É oficial! DEPOIS DO FIM: CONVERSAS SOBRE LITERATURA E ANTROPOCENO está nas livrarias!
Agora você já pode ver nosso livro, organizado por Fabiane Secches, ao vivo — e olha, ele é lindo, viu? Por dentro e por fora!
Mas, como sempre, o que importa é o conteúdo. Então aqui vai mais um trecho de DEPOIS DO FIM para você degustar.
Quando a ficção não é o bastante
Enchendo os pulmões e soprando com força
Em junho de 2019, acordei para um dia como todos os outros. Fiz café, peguei a xícara e me sentei na poltrona para a minha meia hora de leitura matinal. Quando me levantei, era outra pessoa. “Desastres em cascata”, o texto que encontrei na revista piauí, mudou a minha visão sobre a vida para sempre e de forma irreversível, a ponto de, em alguns momentos, eu desejar nunca ter lido aquelas páginas. O que o jornalista David Wallace-Wells expunha não era exatamente uma novidade. O aquecimento global é estudado por cientistas há muito tempo, e, desde 1988, quando o presidente da Nasa, James Hansen, levou essa questão para o Congresso americano, a comunidade científica vem tentando alertar a sociedade para o problema com mais frequência, mas costuma fazê-lo com uma linguagem muitas vezes inacessível ou mesmo aborrecida, impedindo que o assunto avance além de círculos específicos. O texto que li, publicado originalmente na New York Magazine, viralizou porque teve o mérito de simplificar o assunto e torná-lo acessível ao grande público, explicando com uma boa metáfora como um efeito do aquecimento pode despertar outro e quais são os desdobramentos para cada grau que avançamos, partindo do melhor cenário, já dado por certo, de aumento de 2 °C — subida de 50 cm do nível do mar, ondas migratórias, perda de 99% dos corais, redução de 7% da produção agrícola, escassez de água, redução do PIB mundial em 13% —, até o pior cenário, 8 °C — extinção completa da vida no planeta.
De repente, o romance em que eu trabalhava na ocasião me pareceu minúsculo, irrelevante. Não existia nenhum assunto à altura daquele que, dali para a frente, pautaria todos os outros. Como uma fiel que encontrou a luz, senti que precisava pregar e converter os outros. Mas como abordar algo tão complexo e indigesto? Como usar a minha única arma, a escrita, para fazer a crise climática tocar — e não apenas isso, também mover — o maior número de pessoas?
Alguns anos antes, uma questão parecida atingia outro romancista, do outro lado do Atlântico. Aos vinte e sete anos, Jonathan Safran Foer já havia publicado dois livros de ficção muito bem-sucedidos: em 2002, Tudo se ilumina, romance que o tornou conhecido e rendeu uma adaptação para cinema; em 2005, Extremamente alto e incrivelmente perto, outro sucesso, também com adaptação cinematográfica.
E então seu filho nasceu.
Foer diz que todo autor escreve a partir de um trauma, ainda que às vezes não saiba identificá-lo. Ele parece saber identificar os seus. Aos nove anos, assistiu a uma explosão no laboratório da escola que queimou e feriu alguns de seus colegas. Na ocasião, o menino Foer já trazia dentro de si o registro ecoante de outro trauma, não exatamente seu, mas de sua avó, única sobrevivente de uma família judia ucraniana, que escapou do Holocausto e da fome, severa a ponto de deixar feridas no corpo.
Na infância, Foer frequentou a casa dessa avó, escutou diversas vezes suas histórias de privação, a testemunhou guardando todo e qualquer resto de alimento, recortando compulsivamente cupons de desconto de supermercado e estocando vinte e cinco quilos de farinha no porão — ainda que morasse sozinha. Mas o que mais tocou Foer foi uma história que ele repete, de formas variadas, em alguns de seus livros. No final da guerra, sua avó, ainda faminta e cambaleante, sem saber se sobreviveria a mais um dia, encontrou um fazendeiro russo. Ao ver o estado da moça, o fazendeiro se comoveu. Entrou em casa e voltou com um pedaço de carne, que ofereceu para ela.
Foer relata em Comer animais a conversa que teve com a avó a respeito:
— Ele salvou a sua vida.
— Eu não comi.
— Não comeu?
— Era porco. Eu não ia comer porco.
— Por quê?
— Como assim, por quê?
— Porque não era kosher, é isso?
— Claro.
— Mas nem mesmo para salvar a sua vida?
— Se nada importa, não há nada a salvar.
Foer herdou da avó não o medo de passar fome, mas os princípios subjacentes a cada escolha. Tornou-se vegetariano na adolescência e, apesar de algumas recaídas, seguiu quase sem comer carne pela vida adulta, transpondo o assunto inclusive para a sua ficção. Num trecho de Tudo se ilumina, uma personagem causa furor no restaurante de uma cidade pequena da Ucrânia ao pedir um prato sem carne. A garçonete não aceita o pedido e traz um prato com os nacos, que devem ser postos de lado, gerando uma situação cômica.
A leveza para abordar o tema parece se desfazer alguns anos depois, quando Foer é impactado pelo nascimento do filho, já mencionado. Como ele escreve pouco tempo mais tarde, a alimentação “me afeta de um modo que poderia ser mais facilmente esquecido ou ignorado se eu não fosse pai, filho ou neto — se, como jamais aconteceu com quem quer que já tenha vivido, eu comesse sozinho”.
Muitas áreas da cultura têm se proposto a falar do Antropoceno — o período vigente, em que o impacto de algumas ações humanas sobre o meio ambiente se mostrou ainda mais destrutivo, quiçá irreversível. A seu modo, cada campo do conhecimento destrincha nossos graves delitos como humanidade que se pensou superior às outras formas de vida, às outras espécies e a determinados grupos entre seus iguais. Mas é na literatura — sempre ela — que essas dores ganham corpo e contornos capazes de nos tirar da zona de conforto e nos fazer imaginar mundos possíveis, com relações e ações mais harmoniosas, horizontais e coletivas. DEPOIS DO FIM reúne um time de grandes autores em ensaios literários que propõem reflexões sobre dilemas atuais — catástrofe climática, extinção de outras espécies, exclusão social impulsionada pela exploração neoliberal, ameaça aos povos originários, entre outros temas —, convidando-nos a pensar sobre como tecer, em conjunto, um novo começo.
Organizado por Fabiane Secches, DEPOIS DO FIM contém textos de Ana Rüsche, Aurora Bernardini, Christian Dunker, Daniel Munduruku, Fabiane Secches, Giovana Madalosso, Itamar Vieira Junior, Maria Esther Maciel, Micheliny Verunschk, Natalia Timerman, Paula Carvalho, Paulo Scott e Tulio Custodio.